É com grande satisfação que iniciamos o estudo de um dos temas mais relevantes e transformadores do Direito Civil contemporâneo: o Direito Civil Constitucional. Esta expressão não representa apenas uma nova área de estudo, mas sim uma mudança paradigmática profunda na forma como interpretamos e aplicamos o Direito Privado no Brasil.
I. O Modelo Clássico: O Código Civil de 1916 e o Patrimonialismo
Para entender a relevância do Direito Civil Constitucional, é crucial revisitar o contexto do Código Civil de 1916 (o Código anterior).
O Código de 16 era fortemente inspirado no liberalismo econômico. Sua principal preocupação era com o proprietário, o testador, o homem e o contratante.
Nessa época, existia uma dicotomia muito clara entre a Constituição e o direito privado.
1. Patrimonialismo Absoluto: Havia um alto grau de importância dado à propriedade e ao patrimônio. O patrimonialismo era algo muito forte.
2. Contratos e o Pacta Sunt Servanda: O princípio do pacta sunt servanda (a ideia de que o contrato tem que ser cumprido) era tido como absoluto. Os contratos assinados deviam ser cumpridos acima de tudo, e não havia espaço para flexibilizar esse princípio.
3. Vínculo vs. Relação: Os contratos eram pautados no vínculo obrigacional, com a ideia de que seus efeitos atingiriam apenas os contratantes.
4. Ausência de Mínimo Vital: Não se falava, por exemplo, na proteção do patrimônio mínimo ou na teoria do patrimônio mínimo, que hoje resguarda um mínimo de patrimônio para que o indivíduo tenha uma vida digna.
5. Família: O casamento, por exemplo, era apenas aquele formado pelo homem e pela mulher.
II. A Transformação: Neoconstitucionalismo e Seus Pilares
O marco para a superação desse modelo clássico é o surgimento do Neoconstitucionalismo, que promoveu a releitura do Direito Constitucional.
O Neoconstitucionalismo tem como um dos pilares de sustentação a efetivação da Constituição. A Constituição não pode ser letra morta; ela tem que ser efetiva.
O núcleo axiológico, ou pilar de sustentação, deste movimento é a valorização dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana (DPH).
A. Os Marcos do Neoconstitucionalismo
A doutrina aponta três marcos que caracterizam essa nova fase:
1. Marco Histórico: É o Estado Constitucional de Direito, que surge nas últimas décadas do século XX.
2. Marco Filosófico: É o Pós-Positivismo, um movimento que busca superar a dicotomia entre jusnaturalismo e positivismo. Ele busca ir além da legalidade estrita, mas sem desconsiderar o direito posto. Com isso, há uma reaproximação do Direito com a ética, justiça e moral.
3. Marco Teórico: É um conjunto de mudanças que inclui a força normativa da Constituição e a expansão da jurisdição constitucional. É aqui que surge um conjunto de novas técnicas de interpretação, a chamada Nova Hermenêutica Constitucional.
III. A Constitucionalização do Direito Civil
Uma das características essenciais do Neoconstitucionalismo, e fundamental para o nosso estudo, é a Constitucionalização do Direito.
A constitucionalização nada mais é do que ampliar o sentido e o alcance da Constituição de forma a atingir outros ramos do direito, como o Direito Civil, sem a necessidade de uma norma infraconstitucional específica.
Essa ideia principal é denominada Ubiquidade Constitucional. Isso significa que a Constituição está em todos os lugares (Direito Civil, Direito Penal, Direito Tributário, etc.) e não pode ser ignorada. É dessa premissa que surge a própria expressão Direito Civil Constitucional.
A Constituição, portanto, passa a atuar como um microssistema de proteção e gera um intervencionismo do Estado, provocando a releitura de diversos institutos do Direito Civil à luz da dignidade da pessoa humana.
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IV. Os Efeitos Práticos: Eficácia Irradiante e as Novas Diretrizes
Lembrem-se que a dignidade da pessoa humana possui eficácia irradiante.
Originalmente, os direitos fundamentais foram pensados para a proteção do particular frente ao Estado (o que se chamava de Estado negativo, onde o Estado não atua para resguardar a liberdade).
Contudo, com a Ubiquidade Constitucional e a releitura do Direito Civil, surge a Eficácia Horizontal (ou Eficácia Irradiante) dos Direitos Fundamentais.
A. Aplicação dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas
A eficácia horizontal significa a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Isso muda a forma como enxergamos:
• Contratos: O princípio do pacta sunt servanda deixa de ser absoluto, pois deve ser modulado pela DPH, solidariedade e igualdade.
• Casamento e Família: O conceito de família é alterado.
• Propriedade: A propriedade deve respeitar sua função social, e o conceito de hipossuficiência (vulnerabilidade) passa a ser relevante.
B. Os Pilares Atuais do Direito Civil
Em razão do Neoconstitucionalismo, o Direito Civil atual respeita algumas diretrizes essenciais:
1. Dignidade da Pessoa Humana.
2. Solidariedade Social.
3. Igualdade Substancial.
Essa releitura levou à superação do antigo vínculo obrigacional, substituindo-se o termo por relação jurídica. Essa mudança é importante porque a relação jurídica atinge também outros elementos e terceiros, e não apenas os contratantes iniciais.
Além disso, a preocupação com o patrimônio mínimo é central, pois visa resguardar o mínimo de patrimônio para que o indivíduo tenha uma vida digna, algo que era inexistente no Código de 1916.
Esquema para a Prova
O Direito Civil Constitucional representa a fusão do Direito Privado com os valores supremos da Constituição, especialmente a Dignidade da Pessoa Humana. Para a OAB, lembrem-se da chave de contraste:
| CC/1916 (Liberalismo) | CC Atual (Neoconstitucionalismo) |
| Dicotomia clara entre Direito Privado e Constituição. | Constitucionalização e Ubiquidade do Direito. |
| Pacta sunt servanda é absoluto. | Princípios contratuais flexibilizados pela DPH e função social. |
| Foco no Vínculo Obrigacional (atinge só as partes). | Foco na Relação Jurídica (atinge mais amplamente). |
| Ênfase no Patrimônio (proprietário). | Ênfase na Pessoa e no Patrimônio Mínimo. |
| Inexistência de aplicação de Direitos Fundamentais entre particulares. | Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. |
Se o Direito Civil de 1916 era como um castelo isolado, erguido sobre a rocha da propriedade e da autonomia da vontade, o Direito Civil Constitucional é como uma moderna cidade sustentável, onde o planejamento urbano (a Constituição) garante que todas as estruturas (contratos, família, propriedade) funcionem em harmonia com o bem-estar e a dignidade de cada cidadão.
