A essência do Direito Civil Moderno reside na tutela da pessoa humana. Em um contexto de Neoconstitucionalismo, onde a Dignidade da Pessoa Humana (DPH) atua como núcleo axiológico e possui eficácia irradiante, o estudo da Pessoa Natural e dos Direitos da Personalidade ganha centralidade. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é o reflexo mais atual dessa tutela na era digital.
I. A Pessoa Natural e os Dois Sentidos de Personalidade
Para o Direito, pessoa é o ser ou o ente dotado de personalidade. A Pessoa Natural, também referida como ser humano ou Pessoa Humana, distingue-se da Pessoa Jurídica, que é uma ficção jurídica criada pela vontade humana.
O vocábulo “personalidade” é utilizado no Código Civil de 2002 (CC/02), logo no Livro I (Das Pessoas), com dois sentidos técnicos distintos, essencialmente separados nos Capítulos I e II do Título I:
1. Personalidade Jurídica ou Civil (Sentido Patrimonial – Capítulo I)
Este sentido refere-se à aptidão genérica e abstrata que todos possuem para serem titulares de direitos e deveres na ordem civil.
- Viés: Possui um viés patrimonial e está ligada à ideia de titularidade de bens e obrigações.
2. Direitos da Personalidade (Sentido Existencial – Capítulo II)
Este sentido refere-se ao conjunto de atributos que são inerentes à condição humana. São proteções outorgadas pelo ordenamento jurídico pelo simples fato de o indivíduo ser um ser humano.
- Viés: Tem caráter absolutamente existencial e extrapatrimonial, sem qualquer cunho econômico direto.
II. O Início da Personalidade: A Superação da Rivalidade
A clássica discussão sobre o início da personalidade foi modernamente resolvida pela aplicação das teorias a cada um dos sentidos técnicos, superando a rivalidade histórica entre elas.
A. Início da Personalidade Jurídica (Teoria Natalista)
Para a Personalidade Jurídica, que confere a possibilidade de ser titular de bens e direitos, o Direito Civil brasileiro adota a Teoria Natalista:
- Marco: A personalidade civil da pessoa natural começa do nascimento com vida. Exige-se que a pessoa seja separada do corpo da mãe e respire autonomamente, ainda que por uma única respiração.
- Nascituro: O nascituro (sujeito concebido, mas ainda não nascido) não tem personalidade jurídica. Ele possui apenas mera expectativa de direito em relação a direitos patrimoniais, como doações ou herança, e só adquire o direito efetivo se nascer com vida.
- Anencéfalo: Se o feto anencéfalo nascer com vida, ele adquire personalidade jurídica, pois o Brasil não exige “vida viável” para tal aquisição.
B. Início dos Direitos da Personalidade (Teoria Concepcionista)
Para a tutela dos Direitos da Personalidade (proteção existencial), vigora a Teoria Concepcionista:
- Marco: A proteção deve ser dada desde a concepção.
- Nascituro: O nascituro já tem a proteção de seus direitos da personalidade, como honra, imagem e integridade física. Ele pode inclusive sofrer dano moral por violação de direito de personalidade.
- Enunciado CJF: O Enunciado nº 1 do Conselho da Justiça Federal (CJF) consagra que a proteção dos direitos da personalidade do nascituro se dá desde a concepção.
- Natimorto: Não adquire personalidade jurídica, pois nasceu sem vida. Contudo, o natimorto terá a tutela de seus direitos da personalidade, possuindo, por exemplo, o direito a uma sepultura e a ter um nome (registro de nascimento e óbito).
- Concepturo: O concepturo (elemento humano que antecede a concepção) não possui proteção de direitos de personalidade.
III. Direitos da Personalidade: Características e Extensão da Tutela
Os Direitos da Personalidade são o conjunto de atributos que conferem proteção legal ao indivíduo em sua integridade física, moral e intelectual.
A. Características Fundamentais
Os Direitos da Personalidade, conforme o Código Civil, são:
- Inatos: Nascem com a pessoa, embora a proteção se estenda ao nascituro.
- Intransmissíveis: Não são herdados.
- Impassíveis de Cessão (Insensíveis): Não podem ser cedidos a terceiros.
- Irrenunciáveis: Não se pode renunciar ao direito, mas é possível a renúncia ao seu exercício.
- Não Podem ser Objeto de Limitação Voluntária em seu Exercício.
- Atenção: Em regra, não se admite limitação, mas ela é possível desde que não seja geral e perene (perpétua). Se for uma limitação específica e temporária, pode ser admitida (raciocínio complexo).
- Absolutos (Eficácia Erga Omnes): O termo absoluto refere-se à eficácia, significando que eles produzem efeitos contra todos (erga omnes) e não apenas entre as partes (inter partes).
B. Proteção Post Mortem
Após a morte, os Direitos da Personalidade morrem com a pessoa. Contudo, a lei permite que os vivos os protejam. O Código Civil permite a proteção dos direitos de personalidade do morto pelo cônjuge ou companheiro e pelos parentes (em linha reta sem limitação, e na linha colateral até o quarto grau).
C. Proteções Específicas
- Corpo e Integridade Física:
- Corpo Vivo: A disposição voluntária do corpo é vedada quando importar redução permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes. As exceções são por exigência médica ou para fins de transplante.
- Corpo Morto: A disposição pode ocorrer (total ou parcial) para fins científicos ou altruísticos. Este ato de disposição é caracterizado pela revogabilidade plena a qualquer tempo.
- Nome: O nome (prenome + sobrenome) é protegido.
- O uso do nome da pessoa para finalidade comercial exige autorização.
- Há violação do direito de personalidade se o uso gerar desprezo público, sendo irrelevante se houve ou não intenção difamatória.
- O pseudônimo é protegido, mas apenas desde que seja utilizado para atividades lícitas.
- Imagem, Honra, Intimidade e Privacidade:
- Não pode haver exposição, utilização, ou difusão sem autorização.
- Dispensa de Autorização: A autorização é dispensada quando o uso for necessário para a administração da justiça ou para a manutenção da ordem pública (ex: divulgação de imagem de foragido).
- Indenização: Em caso de ameaça ou lesão, é possível exigir medidas para cessá-la, além da indenização por dano moral.
IV. Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei 13.709/2018)
A LGPD é a resposta legal à necessidade de proteger a personalidade e a privacidade no contexto da tecnologia e do tratamento massivo de informações, sendo inspirada pela GDPR da União Europeia.
A. Objetivos e Fundamentos
A lei visa proteger os direitos fundamentais de liberdade, de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
A disciplina da LGPD possui fundamentos expressos:
- Respeito à privacidade.
- Autodeterminação Informativa: É o poder que o cidadão, como titular do dado, tem de decidir se suas informações serão coletadas, tratadas ou compartilhadas.
- A liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião.
- A inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem.
- Os direitos humanos, da personalidade, dignidade e o exercício da cidadania.
B. Conceitos Chave (Artigo 5º da LGPD)
É fundamental conhecer os conceitos que norteiam toda a legislação:
- Dado Pessoal: É qualquer informação relacionada a pessoa natural (pessoa física), que esteja identificada ou seja identificável. A LGPD tutela dados da Pessoa Natural, não atingindo diretamente dados de pessoas jurídicas (salvo se neles constarem dados pessoais), nem segredos de negócio ou patentes, que são objeto de leis específicas.
- Tratamento: É toda e qualquer operação realizada com dados pessoais, sendo um termo extremamente abrangente. O tratamento engloba diversas ações, como coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação, controle, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração.
C. Aplicação e Tutela
- Meios: A LGPD se aplica ao tratamento de dados pessoais tanto nos meios digitais (online) quanto em meios físicos/documento físico (offline).
- Agentes: A lei deve ser observada por todos que realizam o tratamento, seja pessoa natural ou pessoa jurídica, de direito público (União, Estados, DF, Municípios) ou privado.
- Dados Estruturados e Não Estruturados: A lei tutela ambos. Dados estruturados são aqueles organizados em bancos de dados relacionais (tabelas, planilhas), seguindo regras rígidas. Dados não estruturados são de difícil indexação e recuperação (vídeos, áudios, imagens), mas a LGPD incide se puderem identificar o titular.
- Consentimento: O tratamento de dados pessoais geralmente depende do consentimento explícito do titular, especificando a finalidade. Contudo, a LGPD prevê hipóteses em que o tratamento pode ocorrer sem consentimento, como para a preservação da vida ou integridade física do titular ou de terceiros.
Esquema para fixar:
Se os Direitos da Personalidade são a armadura que protege a essência do ser humano (honra, corpo, nome), a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é a nova camada de criptografia dessa armadura. No mundo digital, onde o indivíduo é constantemente reduzido a fluxos de informação, a LGPD garante que o titular mantenha o “código-fonte” de sua existência, exercendo o controle sobre o que pode ou não ser feito com a sua identidade informacional.
