Após dominarmos a Teoria Geral dos Contratos — que estabelece os princípios (clássicos e contemporâneos) e os requisitos de validade e eficácia de todo e qualquer acordo de vontades — avançamos para o estudo dos Contratos em Espécie.
Estes contratos são a materialização das relações jurídicas patrimoniais mais comuns e exigem do examinando o conhecimento de suas regras específicas, que prevalecem sobre as normas gerais.
I. Tipos de Contratos e a Autonomia da Vontade
No Brasil, o Código Civil de 2002 (CC/02) não apresenta um número exato e fechado de tipos de contratos. Isso se deve ao princípio da autonomia da vontade, que permite às partes criar diferentes contratos, desde que não contrariem normas de ordem pública ou os bons costumes.
- Contratos Típicos (Nominados): São aqueles que possuem previsão legal específica e regras disciplinadas no Código Civil. O CC/02 disciplina 23 contratos típicos.
- Contratos Atípicos (Inominados): São aqueles que resultam do acordo de vontades, mas não têm regulamentação legal específica. Para serem válidos, basta o consenso, que as partes sejam livres e capazes, e que o objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável.
O estudo dos contratos em espécie para a OAB foca principalmente nos contratos típicos mais comuns.
II. O Contrato de Compra e Venda (Arts. 481 a 532, CC)
O contrato de compra e venda é um dos mais comuns. Nele, o vendedor assume a obrigação de entregar a propriedade de um bem (móvel ou imóvel) ao comprador, mediante o pagamento de um preço em dinheiro.
A. Natureza e Características
- Sinalagmático (Bilateral): Gera obrigações recíprocas. O comprador entrega o dinheiro porque o vendedor tem a obrigação de entregar a coisa.
- Consensual: Os efeitos são gerados a partir do acordo de vontades, não sendo necessária a entrega da coisa (tradição) para que as obrigações sejam exigidas.
- Oneroso: Traz sacrifícios e vantagens para ambas as partes (ex: o vendedor perde a coisa, mas ganha o dinheiro).
- Comutativo: Na sua essência, as partes podem antever as vantagens e os sacrifícios. Não pode haver risco na formação do contrato, exceto quando for um contrato acidentalmente aleatório.
B. Tradição e Direitos Reais
O contrato de compra e venda não transfere a propriedade por si só; ele gera apenas a obrigação de transmitir a propriedade.
- A aquisição da propriedade (Direito Real) só ocorre com a Tradição (entrega efetiva da coisa móvel) ou com o Registro (no caso de bem imóvel, mediante escritura pública).
- Até o momento da tradição, a responsabilidade pelos riscos de perda ou deterioração da coisa recai sobre o vendedor (regra do res perit domino).
C. Elementos Essenciais (Requisitos Específicos)
Além dos requisitos gerais de validade do negócio jurídico, a compra e venda exige:
- Consentimento: Vontade livre e capaz (capacidade civil e legitimação). Exige-se a outorga uxória (autorização do cônjuge) se o bem for comum ao casal, dependendo do regime de bens. Também exige o consentimento dos demais descendentes na venda de ascendente a descendente, para evitar simulação de doação e burla à parte legítima.
- Preço (Pecuniariedade): Deve ser predominantemente em dinheiro (pecuniariedade). Se for predominantemente em outra coisa, o contrato será de troca ou permuta. Deve ser sério (proporcional ao valor da coisa, não irrisório) e certo (determinado ou determinável no momento da execução).
- Coisa: Deve existir (em regra), ser individualizada (certa e determinada) e estar disponível (não estar fora do comércio por natureza, lei ou vontade).
IV. Cláusulas Especiais à Compra e Venda
São elementos acidentais que modificam os efeitos do contrato e dependem da vontade das partes para existir.
A. RetroVenda (Arts. 505 a 508, CC)
- Conceito: É a cláusula que confere ao vendedor o direito de reaver o imóvel vendido em certo prazo, restituindo o preço recebido mais as despesas.
- Natureza: É um direito que incide somente sobre bens imóveis.
- Prazo: O prazo máximo para o exercício da cláusula de resgate é de três anos.
- Efeitos Erga Omnes: Por ser registrada na escritura pública do imóvel, gera efeitos contra terceiros. Se o comprador vender o imóvel a um terceiro, o vendedor original pode exercer o direito de resgate contra este terceiro.
B. Preempção ou Preferência (Arts. 513 a 520, CC)
- Conceito: O vendedor tem o direito de ser o primeiro a comprar o bem de volta (preferência convencional) caso o comprador decida vendê-lo (expropriação).
- Iniciativa: O exercício da preferência depende da vontade do comprador (que decide vender).
- Condições: O comprador deve oferecer o bem ao vendedor nas mesmas condições que ofereceria a terceiros (preço, forma de pagamento, prazo).
- Natureza: Aplica-se a bens móveis e imóveis.
- Prazo Máximo: 180 dias para móveis e dois anos para imóveis.
C. Reserva de Domínio (Arts. 521 a 528, CC)
- Conceito: É uma garantia para o vendedor em contratos a prazo (execução diferida ou continuada).
- Efeitos: O vendedor entrega a posse direta da coisa ao comprador, mas mantém a propriedade resolúvel até o pagamento integral do preço.
- Natureza: Aplica-se a compra e venda de bens móveis infungíveis.
- Risco: Após a tradição da posse, o comprador é responsável por todos os riscos de perecimento ou deterioração da coisa, mesmo sem ser o proprietário.
- Exigibilidade: Para reaver o bem ou cobrar as parcelas, o vendedor deve constituir o comprador em mora (notificá-lo).
V. Troca ou Permuta (Arts. 533, CC)
O contrato de troca ou permuta é muito similar à compra e venda, sendo regido pelas mesmas normas, com duas peculiaridades.
- Objeto do Preço: O pagamento é feito mediante a entrega de outra coisa (bem). Se o preço for predominantemente em dinheiro, é compra e venda; se for predominantemente em coisa ou metade/metade, é troca ou permuta.
- Despesas: As despesas do contrato (como as de registro) são divididas (rateadas) por igual entre os permutantes, salvo estipulação em contrário.
VI. Contrato Estimatório (Venda em Consignação) (Arts. 534 a 536, CC)
Comum no dia a dia, como na venda de veículos usados ou semijoias.
- Conceito: Uma pessoa (consignante) entrega bens móveis infungíveis a outra (consignatário), que os recebe com a faculdade de vendê-los a terceiros em nome do consignante, dentro de um prazo estipulado.
- Natureza Real: O contrato só começa a gerar efeitos jurídicos a partir da entrega efetiva da coisa (tradição), e não apenas pelo acordo de vontades.
- Poder de Dispor: O consignatário recebe o poder de dispor (vender) do bem, mas não se torna proprietário.
- Risco: O consignatário assume o risco pela perda ou deterioração da coisa desde o momento em que a recebe.
- Garantia contra Credores: Os bens em consignação não podem ser penhorados ou dados como garantia por dívidas do consignatário, pois não pertencem a ele.
VII. Doação (Arts. 538 e ss., CC)
A doação é o contrato pelo qual o doador, por mera liberalidade, transfere bens ou direitos para o donatário, que os aceita, sem esperar qualquer contraprestação.
A. Natureza e Características
- Contratual: Não é um ato unilateral. Requer a manifestação de duas vontades (doador e donatário).
- Unilateral (como regra): Gera obrigações apenas para o doador (o doador é devedor; o donatário fica em inércia).
- Gratuito (Benéfico): Somente uma das partes aufere benefício (o donatário).
- Animus Donandi: Exige a intenção de doar (característica subjetiva).
- Solene/Formal: O contrato de doação, como regra, deve ser escrito (instrumento particular), sendo uma exceção ao princípio do consensualismo. A escritura pública é necessária se envolver bem imóvel.
- Exceção: A doação manual (de bens móveis de pequeno valor) pode ser verbal.
B. Aceitação (Requisito Contratual)
A doação só se aperfeiçoa com a aceitação do donatário.
- Aceitação Presumida (Pura): Se a doação for pura (sem encargo, sem condição) e o doador estabelecer um prazo para o donatário se manifestar, o silêncio do donatário é considerado aceitação.
- Aceitação Ficta (Incapaz): A doação pura feita ao incapaz presume-se aceita, por ser benéfica.
- Revogação: A doação pode ser revogada, geralmente por casos de ingratidão ou descumprimento de encargos.
VIII. Outras Espécies de Contratos Típicos
Os contratos típicos não se limitam aos acima, incluindo outros importantes, como:
- Comodato: Contrato de empréstimo gratuito de bens não consumíveis. O comodatário deve devolver o bem nas mesmas condições. É unilateral e real (exige a entrega da coisa).
- Mútuo: Contrato de empréstimo de bens fungíveis (como dinheiro ou produtos substituíveis). O mutuário deve restituir o bem da mesma espécie, qualidade e quantidade. É unilateral e real.
- Mandato: Uma pessoa (mandante) confere poderes a outra (mandatário) para atuar em seu nome na realização de atos jurídicos (procuração). É unilateral.
- Depósito: Uma parte (depositante) entrega um bem à outra (depositário) para que esta o guarde temporariamente e o devolva posteriormente. É unilateral e real.
- Fiança: Contrato acessório de garantia, pelo qual uma parte (fiador) garante o cumprimento de uma obrigação de outrem. É acessório e unilateral.
Esquema para fixação:
O segredo para acertar as questões de Contratos em Espécie é focar nas peculiaridades de cada um. Na Compra e Venda, o preço é em dinheiro; na Permuta, é em coisa. No Comodato (empréstimo) o bem volta; na Doação (gratuidade), ele é transferido em definitivo. Lembre-se sempre da relação de acessoriedade (fiança) e da exigência da tradição (depósito, comodato) para aperfeiçoar o contrato (contratos reais).
